Histórias de Moradores de Bangu

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores do bairro.


História do Morador: Pastor Dione dos Santos
Local: São Paulo
Data da publicação: 04/10/2012

História: Do tráfico para a Igreja


Sinopse:


Dione fala sobre origem dos avós e dos pais, relembra a remoção da família de uma favela carioca para a Vila Aliança, no bairro de Bangu, Rio de Janeiro, na década de 1960, local onde se encontram as memórias de sua infância, como as brincadeiras, a vizinhança, a fábrica de tecidos, o time de futebol Bangu e o bazar de carteirinha, isto é, a venda à fiado. Dione conta sobre o papel da religião na vida familiar, a rigidez nas escolas em que estudou, o início do envolvimento de seus amigos com o tráfico, a venda de roupas, os bailes na comunidade, o poder dos traficantes e de quem está no movimento.

Ele conta sobre alguns fatos da década de 1980, como a disputa entre os comandos e o Exército, o conhecimento de armas e seu envolvimento com o tráfico de drogas na comunidade, do qual tornou-se tesoureiro do grupo. Dione fala como retornou para a Igreja, se tornou pastor e iniciou o projeto de evangelização dentro da favela, como conheceu sua esposa e construiu sua família. O seu personagem leva o seu nome em Suburbia: “Pastor Dione”.


História

A minha infância foi muito boa, porque o meu pai e minha mãe me trataram como um príncipe, por ser a primeira criança dentro da família. Meu pai era comerciante, e ele me dava de tudo. Era evangélico, um ministro da casa de Deus. Minha mãe também. E nascemos dentro de um berço evangélico. Quando a minha mãe começou a me gerar, ela teve complicações, quase abortou porque foi uma gravidez de risco. E meu pai falou: “Se essa criança nascer saudável, ainda mais um homem, nós vamos consagrar e ensinar que todo percurso da vida dela tem que ser na presença de Deus”. E havia um filme americano que o Johnny era um guerreiro, lutava por aquilo que ele queria, e meu pai ficou muito impactado: “Esse camarada é tudo que eu quero que o meu filho seja”, e colocou o meu nome de Johnny, mas quando ele foi registrar não podia colocar nome americanizado, estrangeiro.

Então a pronúncia sai Johnny, mas por escrito colocaram Dione. A minha infância foi na Vila Aliança, Bangu, uma comunidade aonde as pessoas vieram de várias partes do Rio de Janeiro na década 60 e 70. As pessoas estavam sendo imigradas de algumas comunidades pra lá. Minha mãe veio de Ramos, que eles estavam fazendo alguma urbanização e algumas casas foram demolidas, e imigraram. Eram umas casas precariazinhas, feitas pra mudança rápida, de baixa renda. Era um lugar pacato, que você não via droga, traficante, que fazia o bem estar de quem crescia ali.No início a minha família era bastante carente, mas quando meu pai casou com a minha mãe, ele trabalhava numa gráfica e era um homem que sabia desenvolver tudo que vinha na sua mão.

Ele foi trabalhar como HP, homem porta, dessas pessoas que ficam na porta chamando os clientes pra loja. Ele trabalhou como HP ao ponto de se desenvolver tanto que passou a ser vendedor. De vendedor o patrão chamou e propôs uma sociedade. Dali ele começou a desenvolver e montou um comércio dentro da comunidade, um bazar da carteirinha. Era onde as pessoas compravam fiado e botava na carteirinha. Eu fiquei na escola Getúlio Vargas até os 13 anos de idade e aí comecei a querer ter uma independência e falei pro meu pai: “Eu quero estudar à noite e ajudar o senhor no comércio.” Eu estudei à noite e comecei a trabalhar com o meu pai. Mas eu comecei a faltar à aula, e falei: “Pai, não tem condições de estudar à noite, vou trancar minha matrícula.” Ele: “Não, você tem que terminar os seus estudos”.

Foi uma guerra terrível. E eu saí do trabalho do meu pai e do colégio e montei uma barraquinha de doce. E dessa barraca se tornou outro armazém. Aí eu vi que tinha um dom pro comércio e comecei a comprar roupa pra vender pra rapaziada da comunidade. A gente sabia aonde tinha essas roupas e vendia pelo dobro. Aos 16 anos eu conhecei um amigo e comecei a me enturmar com a rapaziada. E na época começou a não ser mais aquela comunidade pacata, a droga começou a entrar e se formar o tráfico. Começaram os pequenos furtos, meu pai estava sendo assaltado, os fornecedores do meu pai, bujão de gás começou a ser roubado.

E teve um camarada que se intitulou Robin Hood, que começou a ser o guardião da comunidade, e por isso havia correções e ele botou o tráfico de drogas, que é a cocaína, e foi fundado o Terceiro Comando. Ele preferiu unificar tudo e aquilo foi uma renda muito grande. E eu conheci esse jovem que era sobrinho desse rapaz. Eu comecei a andar com ele, vender roupa pra ele, pro tio. Eu vendo ali os caras traficando, e esse outro lado começou a me interessar.

Nós começamos a ficar mais íntimos da situação ao ponto de eu me tornar um dos tesoureiros, porque eu sabia mexer com comércio. Então eu me tornei participante ativo do tráfico. Nunca cheirei, nunca fumei e nunca matei, mas ajudava o tráfico. E foi quando eu desvencilhei de vez da minha família ao ponto de dormir em casa só nas madrugadas. Era um jovem que começou a viver nas ruas, nas baladas, conheci as mulheres... Aí servi o quartel e fui pro exército onde aprendemos a manusear arma, e eu comecei a ensinar os garotos como manusear um fuzil.Teve a necessidade de impor ordem na comunidade, e as pessoas que roubavam eram cobradas com tiro na mão, no pé e se ficasse mais agravante perdia a própria vida. E eu vi isso tudo acontecer.

Ao ponto de eu ser um jovem já com o coração fechado; não era mais aquele menino dócil, aquele adolescente que queria brincar. Meu negócio agora era uma coisa mais séria, sinistro. Eu montei um depósito de bebida, e a coisa foi crescendo ao ponto de eu estar no tráfico, ter o meu comércio e montei também uma quadrilha de assalto a banco.Nessa época eu conheci uma menina, que hoje é minha esposa. Ela não sabia quem eu era, casou comigo pensando que eu era um trabalhador, e até então os meus pais não sabia quem eu era. Nunca deixei ninguém me ver armado. Ela ficou sabendo quando eu fui preso, com 22 anos de idade.

O tio desse rapaz morreu, e ele teria que assumir a comunidade. Ele me chamou: “Eu vou ser o dono da favela e você vai ser o segundo homem. A gente vai ter que fazer uma limpeza, você vai ter que matar, a agir de uma outra forma”. Nós compramos armamento, dois quilos de cocaína e a gente ia assumir uma responsabilidade de dono da favela.Um rapaz que era um dos maiores assaltantes de banco fazia parte da minha quadrilha, e ele foi preso na frente do meu comércio e ficou devendo um dinheiro pros polícia. E os polícia já tava me investigando e ele trouxe eles até mim. Eles começaram a dar um pente fino na minha casa, no meu comércio. Eles me pediram 50 mil reais. Eu me lembro que foi a primeira vez que eu chorei. Minha família veio e o policial: “O filho da senhora é vagabundo”.

Minha mãe e meu pai chorando, minha esposa, aquela coisa toda e a casa caiu pra mim. Falei pros policiais: “Vamos fazer um acerto. Eu tenho cinco mil, e vocês podem ficar com os armamentos que valem dez mil”. Os policiais fizeram um terror psicológico, mas: “A gente vai aceitar, mas se te pegar na infração de novo não tem mais perdão. Ou é vala ou cadeia”. Falei: “Vocês nunca mais vão me ver nessa situação porque a partir de hoje eu to voltando pra Jesus”. Procurei um pastor naquela mesma noite e me reconciliei com o Senhor. Foi uma mudança radical: “O Dione agora já não ta mais nas esquinas, nas bocas, agora ele ta indo pra igreja, é um homem pacato.” Aquele meu testemunho começou a impactar. Era um fato inédito. Um jovem que tinha tudo pra seguir a vida do crime, largar e viver uma outra vida.

Aí eu comecei voltando pra boca de fumo não como um traficante, mas como articulador, e comecei a ganhar vários jovens do tráfico, a fazer uma revolução juntamente com o pastor da igreja. Montamos o famoso arrastão de Cristo dentro dos bailes, de bíblia na mão e de folheto. O traficante era tido como alguém que não tinha solução, que não tinha regeneração, mas eu era um traficante que foi ressocializado. Eu era um homem que vivia no meio deles, e ali eu podia falar do que eu conhecia. Eu queria que as pessoas conhecessem que o traficante, que eles conheciam como matador, como um homem que portava um fuzil, poderia também ser um cidadão de bem.

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